sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Abandono : É quando uma jangada parte e você fica.

"Só que você foi embora, cedo demais"
"A saudade dói latejada/É assim como uma fisgada/No membro que já perdi"




"A saudade é o revés de um parto"








"Minha linda, minha linda, minha linda!Também te amo e estou com muitas saudades!Bjs da dinda" - dizia ela para mim, num dos últimos scraps.







"Essa mensagem é para responder sua mensagem no meu celular, ok?Estava tentando encontrar algo à altura! Também te amo!
Não suma nunca da minha vida!Bjs da titia, mãe adotiva, madrinha e etc...
Cleyde" -
dizia ela para mim, num e-mail, há exatamente um ano atrás.



Tenho razão de sentir saudade,tenho razão de te acusar.

Houve um pacto implícito que rompeste e sem te despedires foste embora.

Detonaste o pacto.

Detonaste a vida geral, a comum aquiescência de viver e explorar os rumos de obscuridade sem prazo sem consulta sem provocação até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.

Teu ponteiro enlouqueceu, enlouqueceu nossas horas.

Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem continuação, o ato em si,o ato que não ousamos nem sabemos ousar porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,

De nossa convivência em falas camaradas,simples apertar de mãos, nem isso, voz modulando sílabas conhecidas e banais que eram sempre a certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.

Sim, acuso-te porque fizeste o não previsto nas leis da amizade e da natureza nem nos deixaste sequer o direito de indagar porque o fizeste, porque te foste.

Carlos Drummond de Andrade

Não eram 19h quando acidentalmente li na internet sobre a morte de Cleyde Prado Maia.
Para mim, ela não era simplesmente a Cleyde Prado Maia, principal militante do Movimento Gabriela Sou da Paz, maior exemplo de superação, de luta contra a violência em meio à dor que havia sentido na perda de sua única filha.Ela era minha madrinha eleita, minha tia querida, minha amiga,minha mãe adotiva, uma grande referência e uma companhia divertida para praia, shopping e para a vida.
Eu estava me preparando para ir trabalhar, quando li e não quis acreditar.Só acreditei quando liguei no celular dela e quem atendeu, uma militante do nosso Movimento, me falou.Tecnicamente ela não estava morta, posto que estava ligada a aparelhos, mas médicos diziam ser o estado irreversível.
Tive todo o apoio dos meus compadres-irmãos e segui para o teatro para não enlouquecer.Queria ter ido ao hospital na mesma noite, mas acabei indo no dia seguinte.Ali foi o pior de tudo.Não foi o susto, a espera, a notícia...foi vê-la ali, daquele jeito, naquele CTI, cheia de tubos por todos os lados, com mil respiradores e máquinas mantendo-a viva, apesar da morte cerebral, para que a doação de órgãos fosse realizada.Apesar de eu ter absoluta certeza do que tinha acontecido, ou melhor, absoluta a gente nunca tem, porque a gente não quer; mas apesar de saber que ela não voltaria daquele estado, eu não sabia o que fazia: se pegava e carregava de volta para casa, se eu sacudia até ela acordar e acabar assim com aquela brincadeira de mau-gosto, se eu a enchia de beijos e dizia tudo que precisava...para mim, parecia muito que ela ia acordar a qualquer momento, perguntando onde tava o óleo Sève dela, porque estava um sol de lascar, bem como ela gostava e a gente ainda ia pegar uma praia...Mas não, nessa hora eu entendi com clareza o verso de Milton Nascimento que diz: "A hora do encontro é também despedida".



Essa foi a minha despedida.Optei por não ir ao velório, porque não queria guardar na mente a imagem dela inerte.Chorei tudo que queria naquele momento, enchi-a de beijos e fiz cafuné na cabeça dela, bem como ela gostava, bem como eu fazia quando voltávamos de confraternizações fora do Estado, em vans alugadas, e ela vinha deitada em meu colo.Certa vez chegou a dormir mesmo e eu vim segurando-a em cada curva, para que não caísse.Eu achava que ela era imortal.A minha primeira reação ao me deparar com ela no CTI foi dizer: "-Dinda, fala comigo pelo amor de Deus.Eu estou aqui!!".



E nessa hora passa um filme na cabeça da gente.A vida é muito, muito efêmera.Nos falamos na terça feira, ela estava bem, feliz, tinha recebido uma medalha na sexta feira, a maior honraria concedida pela Alerj - a Medalha Tiradentes. Por motivos de força maior (leia-se saúde), não pude ir na entrega.Ficamos de nos ver essa semana, para que eu entregasse seu presente.Na madrugada de terça para quarta, minha afilhada passou muito mal e assim foi até quinta.Nesse meio tempo, em meio à agitação e aos cuidados com ela, me questionava se eu estava sendo realmente uma boa dinda, tão boa quanto a que eu tinha, ainda que eleita .E eu ia ligar pra tia Cleyde e dizer isso a ela - que eu havia lembrado dela porque estava tentando ser tão boa para a Luísa quanto ela sempre foi pra mim.Não deu tempo.
Estávamos adorando o fato de eu estar com rádio, para nos falarmos de graça.Ela sempre se preocupou comigo e sempre dedicou à mim um tratamento rico em carinho e cuidado.Me passou valores, preocupações, precauções importantes que devemos levar pra vida.Era capaz de passar uma hora e meia me dando bronca pelo telefone, de madrugada, se eu fizesse alguma coisa "desaprovável". No dia que eu queria fugir de uma prova de concurso público, ela fez questão de me explicar mil vezes o quanto era importante realizar a prova, nem que fosse pela experiência e me deixou na faculdade, me patrulhou para saber se eu a faria...ficou no pé que nem mãe.A minha irmã também ia fazer e não fez.E Tia Cleyde me dizia: "-Na sua irmã eu não posso mandar, mas sobre você eu tenho poder!"
Vou ter saudades pra sempre...de ir à praia, de ir aos programas do Movimento, de acompanhá-la em alguns eventos, de ir ao shopping, de ser proibida de tomar sorvete, de ligar para absolutamente nada.De passar os dias ajudando nas coisas do Movimento.Lembro-me que nas férias de verão do ano passado, essa era minha maior diversão: eu acordava e ia pra lá fazer o bem, ajudar com as coisas, organizar algumas coisas.



Saudades também de mandar flores no dia das mães e receber o telefonema de uma dinda emocionada. No ano passado, fiz um cartão super bonito, dizendo que quando Deus tirou a minha mãe, o fez seguro e tranqüilo de que eu estaria em boas mãos sempre, porque Ele me enviaria mulheres maravilhosas que, apesar de não a substituírem, iriam fazer por mim sempre o melhor.Era algo nesse sentido.Claro, ela era uma dessas mulheres.Falei mais no cartão, não me lembro ao certo tudo, mas foi caprichado.Ela me ligou chorando no meio da tarde.



Nessa hora eu vejo e valorizo o tratamento que eu dou às pessoas e por conseguinte me é retribuído.Eu faço a mais absoluta questão de dizer sempre o quanto eu amo as pessoas, o quanto elas me são importantes e fundamentais, do quão incompleta eu seria sem elas.Não é uma questão de negativismo, mas a gente não sabe se irá vê-las novamente.A gente espera que sim, mas a vida nos apunhala quando a gente menos imagina.E caímos no erro de ser menos atenciosos em alguns momentos, até pelas atribulações da vida, acabamos sendo um pouco omissos com a família, com os amigos.Isso acontece e não é por maldade.Mas hoje mais do que nunca estou vendo a importância de deixar quem amamos com palavras amorosas.Graças a Deus pude dizer a ela o quanto amava, um pouco antes dela ir embora.
A dor é imensurável.E não passará.Sinceramente, parece que o chão se abriu diante de mim.Pode aliviar, pode parar de latejar um segundo ou outro, a vida segue, mas está sempre aqui.Estou, sem exageros, me sentindo orfã de novo. Digo sem exageros, porque essa afirmação pode soar exacerbada, mas só eu sei o tamanho da ferida. Ela mesma dizia, quando perguntada sobre saudade: "-Só piora!"
Mas saber que ela está indo ao encontro da Gabriela me conforta.Ela fará muita falta a todos que aqui ficaram, mas ela está junto da pessoa que mais fez falta para ela nos últimos cinco anos.


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"RECEBE MENOS QUEM MAIS TEM PRA DAR"